Os princípios gerais da psicologia do alto desempenho voltada à felicidade e a uma vida repleta de fruição e conquistas profissionais
Ideias centrais:
1 – O controle da consciência não é simplesmente uma habilidade cognitiva. Não bata saber como fazer; é preciso fazer, regularmente, da mesma maneira que os atletas e músicos, que continuam a praticar o que sabem teoricamente.
2 – As semelhanças entre a ioga e o flow são extremamente fortes; na verdade, faz sentido pensar na ioga como uma atividade de flow cuidadosamente planejada. Tanto uma como outro tentam atingir um estado de enlevo e abnegação mediante a concentração.
3 – O cultivo do paladar oferece muitas ocasiões propícias para o flow se a pessoa encara o ato de comer – e de cozinhar – com um espírito de aventura e curiosidade, e não como oportunidade para exibir o paladar apurado.
4 – Se os trabalhadores realmente apreciassem seu trabalho, não só extrairiam algum benefício pessoal, como mais cedo ou mais tarde quase certamente seriam mais produtivos e atingiriam as metas estabelecidas.
5 – Criar harmonia em tudo o que é feito é a última tarefa que a teoria de flow apresenta aos desejosos da experiência ótima; ela envolve transformar a totalidade da vida numa atividade de flow isolada, com metas unificadas que fornecem propósito constante.
Sobre o autor:
Mihaly Csikszentmihalyi é professor na Claremont Graduate University e ex-chefe do Departamento de Psicologia da Universidade de Chicago. É autor de vários best-sellers sobre a psicologia da experiência ótima e da criatividade.
Prefácio
Este livro resume, para o público geral, décadas de pesquisa sobre os aspectos positivos da experiência humana – alegria, criatividade, o processo de envolvimento pleno com a vida que chamo de flow. É um passo um pouco arriscado, pois, ao se afastar das restrições estilizadas da prosa acadêmica, é fácil a pessoa se descuidar ou se deixar levar pelo entusiasmo com o tema. O que segue, porém, não é um livro popular com dicas do especialista sobre como ser feliz. Fazer isso seria impossível, de todo modo, pois uma vida bem vivida é uma criação individual que não pode ser passada como uma receita. Em vez disso, o livro procura apresentar princípios gerais, com exemplos concretos de como alguns os usaram para transformar uma existência vazia e entediante numa vida repleta de fruição. Não há promessas de atalhos fáceis nestas páginas. Mas espero que haja informações suficientes para possibilitar aos leitores que se interessam pelo tema a transição da teoria para a prática.
Capítulo 1 – A felicidade revisitada
Durante meus estudos, tentei compreender com a maior precisão possível, como as pessoas se sentiam quando extraíam máximo proveito da vida e por quê. Meus estudos envolveram algumas centenas de “especialistas” – artistas, atletas, músicos, mestres enxadristas e cirurgiões; em outras palavras, pessoas que pareciam passar seu tempo nas atividades de sua preferência. A partir de seus depoimentos sobre como era a sensação de fazer o que faziam, desenvolvi uma teoria da experiência ótima com base no conceito de flow – estado em que a pessoa fica tão envolvida numa atividade que nada mais parece importar, em que a experiência em si é tão apreciada que nos entregamos a ela, mesmo a um alto preço, pela mera satisfação de vivê-la.
Início do conceito. O estudo do flow que comecei na Universidade de Chicago, hoje se espalha pelo mundo todo. Pesquisadores de Canadá, Alemanha, Itália, Japão e Austrália dedicam-se à sua pesquisa. No momento, a mais extensa coleção de dados fora de Chicago fica no Instituto de Psicologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Milão, na Itália. O conceito de flow é considerado útil por psicólogos, que estudam felicidade, satisfação com a vida e motivação intrínseca; por sociólogos, que veem nele o oposto da anomia e da alienação; por antropólogos, interessados no fenômeno da efervescência coletiva e dos rituais. Alguns estenderam as implicações do flow às tentativas de compreender a evolução da humanidade, outros buscam iluminar a experiência religiosa.
Flow x atletas e músicos. Mas se é verdade que as pessoas sabem há milhares de anos o que precisamos fazer para nos libertar e assumir o controle de nossa vida, por que não fizemos mais progressos nessa direção? Por que somos tão ou mais desamparados do que nossos ancestrais para enfrentar esse caos que interfere com a felicidade? Há pelo menos duas boas explicações para essa falha. Em primeiro lugar, o tipo de conhecimento – ou sabedoria – de que a pessoa precisa para emancipar a consciência não é cumulativo. Ele não pode ser condensado em uma fórmula, não pode ser memorizado e depois rotineiramente aplicado. Como outras formas complexas de especialização, como um juízo político maduro ou um senso estético refinado, deve ser obtido individualmente por tentativa e erro, geração após geração. O controle da consciência não é simplesmente uma habilidade cognitiva. Pelo menos tanto quanto a inteligência, exige o envolvimento das emoções e da vontade. Não basta saber como fazer; é preciso fazer, regularmente, da mesma maneira que os atletas ou músicos que continuam a praticar o que sabem teoricamente. E isso nunca é fácil. O progresso é relativamente rápido em áreas que aplicam conhecimento ao mundo material, como física ou genética. Mas é dolorosamente lento quando a aplicação do conhecimento visa modificar nossos hábitos e desejos.
Capítulo 2 – A anatomia da consciência
Como a atenção determina o que aparecerá ou não na consciência e como também é necessária para fazer quaisquer outros eventos mentais – lembrar, pensar, sentir, tomar decisões – acontecerem nela, é útil pensar a seu respeito como uma energia psíquica. A atenção é como uma energia, na medida em que sem ela nenhum trabalho pode ser realizado, e ao fazer um trabalho ela é dissipada. O ser humano cria a si mesmo dependendo de como investe essa energia. Memórias, pensamentos e sentimentos são moldados pela forma como os usamos. A atenção é uma energia sob nosso controle, para ser usada como julgarmos melhor; logo, é nossa ferramenta mais importante na tarefa de melhorar a qualidade da experiência.
Self: hierarquia de metas. Mas o self não é uma unidade de informação qualquer. Na verdade, como tudo o mais, contém tudo o mais que passa pela consciência: todos os desejos, memórias, ações, prazeres e dores estão incluídos ali. E, mais do que tudo, o self representa a hierarquia de metas que construímos, parte por parte, ao longo dos anos. O self do ativista político pode se tornar indiscernível de sua ideologia, o self do banqueiro pode ser engolido por seus sentimentos. Claro que normalmente não pensamos no self dessa maneira. A qualquer momento, em geral temos consciência apenas de uma minúscula parte dele, como quando reparamos em nossa aparência, na impressão que causamos ou no que realmente gostaríamos de fazer, se pudéssemos. Com mais frequência associamos nosso self a nosso corpo, embora às vezes estendamos os limites para identificá-lo com um carro, uma casa, uma família. Seja qual for o grau em que o percebamos o self é, de muitas maneiras, o elemento mais importante da consciência, pois representa simbolicamente todos os demais conteúdos, bem como o padrão de suas inter-relações.
Uma das principais forças a afetar adversamente a consciência é a desordem psíquica – ou seja, informação em conflito com as intenções existentes ou que nos distraia e nos impeça de concretizá-las. Damos a essa condição muitos nomes, dependendo de como a sentimos: dor, medo, raiva, ansiedade, ciúme. Todas essas variedades de desordem forçam a atenção a se desviar para objetos indesejáveis, impedindo nossa liberdade de usá-los segundo nossa preferência. A energia psíquica torna-se morosa e ineficiente.
Capítulo 3 – Fruição e qualidade de vida
Existem duas estratégias principais que podemos adotar para melhorar a qualidade de vida. A primeira é tentar fazer as condições externas se equipararem a nossas metas. A segunda é mudar como vivenciamos as condições externas para fazer com que se ajustem melhor a nossas metas. Por exemplo, a sensação de segurança é um componente importante da felicidade. A pessoa pode aumentar tal sensação comprando uma arma, instalando trancas na porta da casa, mudando para um bairro mais seguro, exercendo pressão política sobre a prefeitura para aumentar a proteção policial ou ajudando a comunidade a ficar mais consciente da ordem civil. Todas essas diferentes respostas objetivam ensejar no ambiente condições mais alinhadas com nossas metas. O outro método pelo qual podemos nos sentir seguros envolve mudar o que entendemos por segurança. Se não alimentarmos a expectativa de que ela deva ser perfeita, se admitirmos que riscos são inevitáveis e conseguirmos tirar proveito de um mundo imperfeito, a ameaça da insegurança terá menos chance de atrapalhar a felicidade.
Riqueza e poder: enganosos. Quando conseguimos de fato nos tornar mais ricos ou poderosos, acreditamos, ao menos por um tempo, que a vida como um todo melhorou. Mas os símbolos podem ser enganadores, eles tendem a nos distrair da realidade que deveriam representar. E a realidade é que a qualidade de vida não depende diretamente do que os outros pensam de nós ou do que possuímos. Em suma, depende antes de como nos sentimos em relação a nós mesmos e ao que acontece conosco. Para a vida ser melhor, a qualidade da experiência deve melhorar.
Fruição x crescimento. A fruição é caracterizada por esse movimento adiante: por uma sensação de novidade, de realização. Apreciamos disputar uma partida de tênis difícil que melhore nosso jogo, ler um livro que mostre a realidade sob nova luz ou ter uma conversa que nos leve a expressar ideias que não sabíamos que tínhamos. Encerrar com sucesso uma boa negociação, ou qualquer trabalho bem feito, é motivo de fruição. Nenhuma dessas experiências precisa ser particularmente prazerosa no momento em que ocorre, mas depois pensamos nelas e dizemos: “Foi bem divertido”, desejamos que aconteçam outra vez. Após usufruir de uma atividade, sabemos que mudamos, que nosso self cresceu: em alguns aspectos nos tornamos mais complexos como resultado.
Capítulo 4 – As condições do flow
À medida que as atividades de flow contemporâneas se secularizam dificilmente ligam o indivíduo a sistemas de significado poderosos como os oferecidos pelas Olimpíadas ou pelos jogos de bola maias. Em geral, seu conteúdo é puramente hedonista: esperamos que melhorem como nos sentimos física ou mentalmente, mas não que nos conectem com os deuses. Não obstante, as atitudes que tomamos para melhorar a qualidade da experiência são muito importantes para a cultura como um todo. Há muito se percebeu que as atividades produtivas de uma sociedade são um modo útil de descrever seu caráter: assim falamos em sociedades de caça/coleta, pastorais, agrícolas, tecnológicas. Mas, como as atividades de flow são escolhidas livremente e são relacionadas de maneira mais íntima às fontes do que é significativo em última instância, talvez sejam indicadores mais precisos de quem somos.
Mas se presumirmos que a aspiração da experiência ótima é a meta primordial de todo ser humano, as dificuldades de interpretação apresentadas pelo relativismo cultural se tornam menos críticas. Todo sistema social pode ser avaliado em termos de quanta entropia psíquica causa, medindo-se essa desordem não com respeito à ordem ideal de um ou outro sistema de crença, mas em referência às metas dos membros dessa sociedade. Um ponto de partida seria dizer que uma sociedade é “melhor” do que outra se nela um número maior de pessoas tem acesso a experiências alinhadas com suas metas. Um segundo critério essencial seria identificar se essas experiências levam a um crescimento do self a nível individual, permitindo que a maior quantidade de gente possível desenvolva habilidades cada vez mais complexas.
Lazer não é sinônimo de fruição. Um dos paradoxos mais irônicos de nossa época é essa grande disponibilidade de lazer que às vezes deixa de se traduzir em fruição. Comparados a apenas algumas gerações atrás, temos oportunidades imensamente maiores de nos divertir. No entanto, nada indica que de fato apreciamos a vida mais do que nossos antepassados. Só oportunidades não bastam. Necessitamos também de habilidades para fazer uso delas. E precisamos saber como controlar a consciência – habilidade que a maioria não cultivou. Cercada por uma panóplia impressionante de dispositivos recreativos e opções de lazer, a maioria ainda fica entediada e vagamente frustrada.
Capítulo 5 – O corpo em flow
Dentre os grandes métodos orientais de treinar o corpo, um dos mais antigos e difundidos é o conjunto de práticas conhecidas como hataioga. Vale a pena examinar alguns dos seus aspectos principais, porque ela corresponde em diversas áreas ao que sabemos sobre a psicologia do flow e, desse modo, oferece um modelo útil para aqueles que desejam obter maior controle sobre sua energia psíquica. Nada como a hataioga foi criado no Ocidente. As antigas rotinas monásticas instituídas por São Bento e São Domingos, e especialmente os “exercícios espirituais” de Santo Inácio de Loyola, provavelmente são o mais perto que chegamos de propor uma maneira de controlar a atenção desenvolvendo rotinas mentais e físicas, mas nem mesmo eles chegam perto da rigorosa disciplina da ioga.
Ioga e flow. As semelhanças entre a ioga e o flow são extremamente fortes; na verdade, faz sentido pensar na ioga como uma atividade de flow cuidadosamente planejada. Tanto uma como o outro tentam atingir um estado de enlevo e abnegação mediante a concentração, o que por sua vez é possibilitado por uma disciplina corporal. Mas alguns preferem destacar as diferenças entre o flow e a ioga. Sua principal crítica é que, enquanto o flow tenta fortalecer o self, o objetivo da ioga e de muitas outras técnicas orientais é aboli-lo. O samádi, último estágio da ioga, é apenas o limiar de entrada no nirvana, em que o self individual se funde à força universal, como um rio desaguando no oceano. Logo, argumentam, a ioga e o flow tendem a resultados diametralmente opostos. Mas a contraposição pode ser mais aparente do que real. Afinal, sete dos oito estágios da ioga envolvem o desenvolvimento de níveis cada vez mais elevados de habilidade de controlar a consciência. O samádi e a liberação que supostamente se segue podem não ser, no fim das contas, tão significativos – em certo sentido, podem ser encarados como justificativa da atividade que tem lugar nos sete estágios prévios, assim como o pico da montanha é importante apenas por justificar a escalada, que é o verdadeiro objetivo da ação.
Flow através da música. Até aqui, vimos apenas como o flow surge de escutar música, mas recompensas ainda maiores se oferecem aos que aprendem a fazer música. O poder civilizador de Apolo dependia de sua capacidade de tocar a lira, a flauta de Pã levava as pessoas ao frenesi e Orfeu deteve até a morte com sua música. Esses mitos apontam para a ligação entre a capacidade de criar harmonia no som e a harmonia mais geral e abstrata subjacente ao tipo de ordem social que chamamos de civilização. Ciente dessa conexão, Platão acreditava que a música tinha de ser a primeira coisa que as crianças deveriam aprender; conseguindo prestar atenção a ritmos e harmonias graciosos, toda a sua consciência ficaria ordenada.
Paladar, fonte de flow. Como outras fontes de flow relativas às habilidades corporais – esporte, sexo, experiências visuais estéticas -, o cultivo do paladar leva à fruição apenas se o indivíduo assume o controle da atividade. Se ele quer se tornar um gourmet ou enólogo só porque está na moda, tentando dominar um desafio externamente imposto, o mais provável é que termine com um gosto amargo na boca. Mas o cultivo do paladar oferece muitas ocasiões propícias para o flow se a pessoa encara o ato de comer – e de cozinhar – com um espírito de aventura e curiosidade, explorando os potenciais do alimento em nome da experiência, e não como uma oportunidade para exibir o paladar apurado.
Capítulo 6 – O flow do pensamento
Observando as condições que ajudam a estabelecer a ordem na mente, examinaremos primeiro o papel extremamente importante da memória. Depois, como as palavras podem ser usadas para produzir experiências de flow. Em seguida, consideraremos três sistemas simbólicos que aprendemos a apreciar quando entendemos suas regras: a história, a ciência e a filosofia. Outros campos de estudo poderiam ser mencionados, mas esses três servirão de exemplo. Cada um desses “jogos” mentais é acessível a qualquer um que queira se envolver com eles.
Uma pessoa capaz de recordar histórias, poemas, letras de música, estatísticas de beisebol, fórmulas químicas, operações matemáticas, datas históricas, passagens bíblicas e citações cultas tem muitas vantagens sobre as demais. A independência de alguém assim é independente da ordem que pode ou não ser fornecida pelo ambiente. Essa pessoa sempre pode se divertir e encontrar significado no conteúdo da mente. Enquanto outros necessitam de estímulos externos – TV, leitura, conversa ou drogas – para impedir a mente de se perder no caos, uma pessoa cuja memória está estocada com padrões de informação é autônoma e autocontida.
Não há dúvida de que um leigo não pode contribuir como hobby com o tipo de pesquisa que depende de aceleradores de partículas de muitos bilhões de dólares ou da espectroscopia de ressonância magnética nuclear. Mas existe ciência fora dessas áreas. A estrutura mental que nos permite apreciá-la é acessível a qualquer um. Envolve curiosidade, observação cuidadosa, um modo disciplinado de registar os eventos e encontrar maneiras de extrair regularidades subjacentes do que se aprende. Também exige a humildade de estar disposta a aprender com os resultados de pesquisadores passados, além do ceticismo e mente aberta suficientes para rejeitar crenças que não sejam sustentadas por fatos.
Filosofia: esforço para pensar melhor. Quando as predileções na filosofia estão claras, até o amador pode se sentir impelido à especialização. Alguns interessados nas características fundamentais da realidade talvez se sintam atraídos pela ontologia e leiam Wolff, Kant, Husserl e Heidegger. Outros mais intrigados com questões do certo e errado optariam pela ética e aprenderiam sobre a filosofia moral de Aristóteles, Tomás de Aquino, Espinosa e Nietzsche. O interesse pelo belo pode levar a pessoa a examinar as ideias de filósofos estéticos, como Baumgarten, Croce, Santayana e Collingwood. Embora a especialização seja necessária para desenvolver a complexidade de qualquer padrão de pensamento, a relação entre metas e fins deve ficar sempre nítida: a finalidade da especialização é pensar melhor; ela não deve ser um fim em si. Infelizmente, muitos pensadores sérios devotam todo o seu esforço mental a se tornar estudiosos renomados, mas nesse ínterim esquecem o propósito inicial de sua erudição.
Capítulo 7 – O trabalho como flow
Quando perguntaram a Serafina [agricultora dos Alpes italianos] o que mais apreciava fazer na vida, ela não hesitou em responder: ordenhar as vacas, levá-las para o pasto, podar o pomar, cardar a lã… na verdade, o que ela mais gosta é o que sempre fez da vida. Em suas palavras: “Me dá uma grande satisfação. Estar ao ar livre, conversar com as pessoas, estar com meus animais. Converso com todos: plantas, pássaros, flores, animais. Tudo na natureza serve de companhia, você a vê progredindo todo dia. Se sente pura e feliz: pena que cansa e você tem que voltar pra casa […] mesmo precisando trabalhar demais, é muito lindo”.
Quando lhe perguntaram o que faria se tivesse todo o tempo e dinheiro do mundo, Serafina riu – e repetiu a mesma lista de atividades: ordenhar as vacas, levá-las para pastar, cuidar do pomar, cardar a lã. O modo de vida chique e moderno não atrai Serafina, ela está perfeitamente satisfeita e serena com o papel que desempenha no universo.
Um dos exemplos mais interessantes de como o fenômeno do flow era visto por pensadores de épocas passadas é o conceito de yu mencionado cerca de 2300 anos atrás nos escritos do estudioso taoista Chuang Tzu. Yu é um sinônimo para a maneira correta de seguir o caminho, ou tao: costuma ser traduzido como “vagando”, “caminhando sem tocar o chão”, ou “nadando”, “voando” e “fluindo”. Chuang Tzu acreditava que yu era a maneira própria de viver, sem preocupações com recompensas externas, espontaneamente, com compromisso total – em suma, como uma experiência autotélica em flow.
Trabalho nem sempre é flow. Em teoria, podemos alterar qualquer trabalho para nos propiciar fruição seguindo as prescrições do modelo de flow. No presente, contudo, o trabalho agradando ou não, figura bem baixo nas prioridades dos que têm o poder de influenciar sua natureza. A gerência está preocupada com a produtividade antes de mais nada e os líderes sindicais precisam ter a segurança, a saúde e a remuneração dos trabalhadores em primeiro lugar. No curto prazo, essas prioridades podem muito bem entrar em conflito com condições produtoras de flow. Isso é lamentável, porque se os trabalhadores realmente apreciassem seu trabalho, não só extrairiam algum benefício pessoal como mais cedo ou mais tarde quase certamente seriam mais produtivos e atingiriam todas as demais metas que agora tomam a precedência.
Capítulo 8 – Apreciando a solidão ou a companhia de outros
Maneiras mais drásticas de lidar com o temor da solidão incluem o uso regular de drogas ou recorrer a práticas obsessivas, que podem ir de limpar a casa incessantemente ao comportamento sexual compulsivo. Sob a influência de substâncias químicas, o self fica aliviado da responsabilidade de direcionar sua energia psíquica: podemos relaxar e observar os padrões de pensamento que a droga está produzindo – seja lá o que acontecer, está fora de nossas mãos. E, como a televisão, a droga impede a mente de precisar enfrentar pensamentos depressivos. Embora o álcool e outras drogas sejam capazes de produzir experiências ideais, seu nível de complexidade em geral é muito baixo. A menos que consumidas em contextos rituais altamente especializados, como é a prática em muitas sociedades tradicionais, o que as drogas de fato fazem é reduzir nossa percepção tanto do que pode ser realizado quanto do que somos capazes de realizar como indivíduos, até ambos estarem em equilíbrio. Esse é um estado de coisas agradável, mas é apenas uma simulação enganosa da fruição derivada de aumentar as oportunidades de ação e a capacidade de agir.
Um exemplo interessante é uma mulher chamada Dorothy, que mora numa minúscula ilha da região isolada de lagos e florestas do norte de Minnesota, na fronteira canadense. Antes enfermeira na cidade grande, Dorothy se mudou para essa região selvagem depois que seu marido morreu e seus filhos cresceram. Durante os três meses de verão, pescadores cruzam o lago e param na ilha para conversar, mas durante os longos invernos, ela fica completamente sozinha por meses seguidos. Dorothy precisou pendurar cortinas nas janelas da cabana, porque ficava preocupada com os bandos de lobos que achatavam o focinho contra os vidros, lambendo os beiços enquanto a observavam toda manhã.
Solidão, mas ordenando a atenção. Mais importante do que estruturar o espaço talvez seja estruturar o tempo. Dorothy tem rotinas rígidas para todos os dias do ano: acordar às cinco, pegar ovos no galinheiro, ordenhar a cabra, cortar lenha, preparar o café da manhã, lavar roupa, costurar, pescar, e assim por diante. Como os colonos ingleses que se barbeavam e se vestiam impecavelmente todos os dias em seus povoamentos solitários no meio do nada, Dorothy aprendeu que para manter o controle em um ambiente estranho a pessoa deve impor uma ordem à natureza. O final do dia, longo, é ocupado com leitura e escrita. Livros sobre qualquer assunto imaginável enchem as paredes de suas duas cabanas. Ainda há as ocasionais saídas para comprar suprimentos, e no verão um pouco de variedade é introduzida com a visita de pescadores de passagem. Dorothy parece gostar da companhia humana, mas aprecia ainda mais estar no controle de seu mundo. Pode-se sobreviver à solidão, mas apenas encontrando maneiras de ordenar a atenção e impedir que a entropia destrua a mente.
Mas as razões extrínsecas não são as únicas para alguém permanecer casado e viver em família. Há grandes oportunidades para a alegria e o crescimento que só podem ser encontradas na vida familiar, e essas recompensas intrínsecas não estão menos presentes que no passado: na verdade, provavelmente estão muito mais disponíveis agora do que em qualquer outro momento. Se a tendência das famílias tradicionais permanecendo juntas sobretudo como conveniência está em desaparecimento, o número de famílias que perduram porque seus membros apreciam a companhia mútua pode estar aumentando.
Capítulo 9 – Ludibriando o caos
Exemplos incríveis de como atingir o flow a despeito de desvantagens extremas foram coletados pelo professor Fausto Maximini, do Departamento de Psicologia da Universidade de Milão. Um grupo estudado por ele e sua equipe era composto de paraplégicos, na maior parte jovens que, em algum momento, em geral como resultado de acidentes, perderam o uso dos membros. A descoberta inesperada desse estudo foi que uma grande proporção das vítimas mencionou o acidente que causou a paralisia não só como um dos eventos mais negativos de sua vida, mas também como um dos mais positivos. O motivo para acidentes trágicos serem vistos como positivos foi proporcionarem à vítima metas muito claras, ao mesmo tempo que reduziam as escolhas contraditórias e não essenciais. Os pacientes que aprenderam a controlar os novos desafios de sua situação prejudicada sentiram uma clareza de propósito de que antes careciam. Reaprender a viver era uma questão de fruição e orgulho, e eles puderam transformar o acidente de uma fonte de entropia em uma ocasião para promover a ordem interna.
Pessoas dignas de admiração. Em um de nossos estudos, a lista de pessoas admiradas incluía uma senhora que, a despeito de sua paralisia, estava sempre animada e disposta a escutar os problemas dos outros; um monitor de acampamento que manteve a cabeça no lugar e organizou um resgate bem-sucedido quando um adolescente que saíra para nadar sumira; uma executiva que, a despeito do menosprezo e das pressões machistas prevaleceu num ambiente hostil; e Ignaz Semmelweis, o médico húngaro que no século XIX insistiu que a vida de muitas mães seria poupada na hora do parto se o obstetra simplesmente lavasse as mãos, mesmo sendo ignorado e ridicularizado pelo resto da classe.
Mas para transformar toda a existência numa experiência de flow não basta aprender como controlar os estados de consciência momento a momento. Também é necessário ter um contexto global de metas para os eventos da vida cotidiana fazerem sentido. Se a pessoa passa de uma atividade de flow para outra sem uma ordem que as conecte, será difícil olhar para trás e encontrar significado no que aconteceu. Criar harmonia em tudo o que é feito é a última tarefa que a teoria de flow apresenta aos que desejam atingir a experiência ótima; ela envolve transformar a totalidade da vida numa atividade de flow isolada, com metas unificadas que fornecem propósito constante.
Capítulo 10 – A criação do significado
A longo da história foram feitas inumeráveis tentativas de descobrir metas supremas que dessem significado à experiência. Essas tentativas com frequência foram bem diferentes entre si. Por exemplo, segundo a filósofa social Hannah Arendt, na antiga civilização grega os homens buscavam alcançar a imortalidade com feitos heróicos, enquanto no mundo cristão homens e mulheres procuram entrar na vida eterna por meio de ações puras. Metas supremas para Arendt devem acomodar a questão da imortalidade: devem dar às pessoas um propósito que se estenda além-túmulo. Tanto a imortalidade como a eternidade conseguem isso, mas de forma muito diferente. Os heróis gregos realizavam feitos nobres para conquistar a admiração de seus conterrâneos, esperando que seus atos de bravura altamente pessoais fossem passados de geração a geração através de canções e histórias. Assim, sua identidade continuaria a existir na memória dos descendentes. Santos, por outro lado, abriam mão da individualidade de modo a fundir seus pensamentos e ações com a vontade de Deus, na esperança de viver eternamente após se unir a Ele. O herói e o santo, na medida em que dedicaram a totalidade de sua energia psíquica a um objetivo superabrangente, que prescrevia um padrão coerente de comportamento a ser seguido até a morte, tornavam a vida deles experiências de flow unificadas.
É possível que um novo sistema de objetivos e meios surja para ajudar a dar significado à vida de nossos filhos no século XXI? Alguns estão confiantes de que o cristianismo restaurado à sua antiga glória atenderá a essa necessidade. Outros acreditam que o comunismo resolverá o problema do caos na experiência humana e que sua ordem vai se espalhar pelo mundo. No momento, nenhum desses desfechos parece provável.
Caminho ao futuro. Se uma nova fé vai capturar nossa imaginação, deve ser uma que explique racionalmente as coisas que sabemos, as que sentimos, as que esperamos e as que tememos. Deve ser um sistema de crenças que ordene nossa energia psíquica em torno de metas significativas, um sistema que ofereça regras para um modo de vida capaz de proporcionar flow.
Resenha: Rogério H. Jönck
Imagens: Reprodução e Unspash
Ficha técnica:
Título: Flow: The Psychology of Optimal Experience
Autor: Mihaly Csikszentmihalyi