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A (honesta) verdade sobre a desonestidade – Como mentimos para todo mundo, especialmente a nós mesmos

Autor: Dan Ariely

Ideias centrais:

1 – Contanto que a gente trapaceie só um pouquinho, podemos nos beneficiar da trapaça e continuar nos vendo como seres humanos maravilhosos. Esse exercício de equilíbrio é o processo de racionalização que chamamos de “teoria de margem de manobra”.

2 – Uma causa comum dos conflitos de interesse é nossa disposição de retribuir favores. Nós, humanos, somos criaturas profundamente sociais, portanto quando alguém nos ajuda ou nos dá um presente, costumamos nos sentir em dívida com as pessoas. Basta lembrar a reciprocidade nas amostras grátis e brindes para influenciar as receitas dos médicos.

3 – Compreender melhor o grau e a complexidade da desonestidade em contextos sociais é um tanto desanimador. Ainda assim, ao entender as possíveis armadilhas envolvidas na colaboração de equipes, podemos tomar algumas providências para corrigir comportamentos desonestos.

4 – À medida que uma visão otimista demais de nós mesmos forma a base de nossas ações, podemos presumir, de maneira equivocada, que as coisas vão se resolver da melhor forma e assim não tomamos as melhores decisões. O autoengano nos leva a “enfeitar” nossas biografias, por exemplo. Com graves danos, após desmascaradas.

5 – Embora seja importante ficar atento à desonestidade mais chamativa, provavelmente é ainda mais importante desencorajar as formas pequenas e mais corriqueiras de desonestidade – os desvios de conduta que nos afetam na maior parte do tempo.

Sobre o autor:

Dan Ariely é professor de Psicologia e Economia Comportamental na Universidade Duke. É um dos membros fundadores do Center for Advanced Hindsight. Publicou diversos artigos em periódicos como The New York Times e The Wall Street Journal, e escreveu, além da presente obra, A psicologia do dinheiro e Previsivelmente irracional.

Introdução

O principal propósito deste livro é examinar as forças racionais de custo-benefício que supostamente implicariam o comportamento desonesto, mas que, na verdade (como você verá), muitas vezes não o impelem. Além disso, vamos examinar as forças irracionais que achamos que não importam, mas que com frequência fazem a diferença. Ou seja, quando uma grande quantidade de dinheiro desaparece, em geral achamos que foi obra de um criminoso frio e calculista. Mas, como constatamos na história dos amantes das artes, a trapaça ou a fraude não se devem necessariamente a um único sujeito fazendo uma análise de custo-benefício e furtando um montão de dinheiro. Em vez disso, não é incomum que muitas pessoas achem justificável pegar um pouquinho de dinheiro. Ou poucas mercadorias repetidas vezes.

Além de explorar as forças que moldam a desonestidade, um dos principais benefícios práticos da abordagem da economia comportamental é mostrar as influências internas e ambientais sobre nossas atitudes cotidianas. Depois que entendemos mais claramente o que de fato nos impele, descobrimos que não estamos impotentes diante de nossas falhas humanas (entre as quais a desonestidade), que podemos reestruturar nosso contexto e assim obter melhores comportamentos e resultados.

Capítulo 1 – Testando o Modelo Simples do Crime Racional (SMORC)

A abordagem tanto de Gary Becker quanto de Jeff Kreisler da desonestidade é composta por três elementos básicos: (1) o benefício que alguém irá obter com o crime; (2) a probabilidade de ser pego; (3) a punição esperada se a pessoa for pega. Ao comparar o primeiro componente (o ganho) com os dois últimos (os custos), o ser humano racional pode avaliar se cometer um crime específico compensa ou não.

Ora, o SMORC poderia ser uma descrição exata de como as pessoas tomam decisões sobre honestidade e trapaça, mas o mal-estar sentido por meus alunos (e por mim mesmo) com as implicações do SMORC sugere que devemos ir um pouco mais a fundo para descobrir o que realmente ocorre.

Margem de manobra. Certamente existem muito mais coisas acontecendo aqui do que Becker e a economia-padrão querem que a gente acredite. Para começar, a descoberta de que o nível de desonestidade não é influenciado em alto grau (em nenhum grau em nossos experimentos) pela quantia de dinheiro a ser ganha sendo desonesto indica que a trapaça não resulta da simples análise dos seus custos e benefícios. Além disso, os resultados mostrando que o nível de desonestidade não é alterado por mudanças na probabilidade de ser pego tornam ainda menos provável que ela esteja enraizada na análise de custo-benefício. Finalmente, o fato de muitas pessoas trapacearem só um pouquinho dada a oportunidade indica que as forças que governam a desonestidade são bem mais complexas (e mais interessantes) do que prevê o Modelo Simples de Crime Racional.

É aqui que nossa incrível flexibilidade cognitiva entra em jogo. Graças a essa habilidade humana, contanto que a gente trapaceie só um pouquinho, podemos nos beneficiar da trapaça e continuar nos vendo como seres humanos maravilhosos. Esse exercício de equilíbrio é o processo de racionalização, a base do que chamamos de “teoria da margem de manobra”.

Capítulo 2 – A margem de manobra na prática

Quando pergunto às pessoas como poderíamos reduzir a criminalidade em nossa sociedade, em geral elas sugerem ter mais policiais nas ruas ou aplicar punições mais rígidas aos infratores. Quando pergunto a CEOs de empresas o que fariam para resolver os problemas de furto interno, fraude, exageros em relatórios de despesas e sabotagem (quando o funcionário faz coisas que prejudicam seu empregador sem nenhum benefício concreto para si mesmo), eles costumam sugerir uma supervisão mais rigorosa e políticas de não tolerância severas. Quando os governos procuram reduzir a corrupção ou criar regulamentações para impedir comportamentos desonestos, tendem a defender a transparência como uma cura para os males da sociedade.

Obviamente, poucos são os indícios de que qualquer uma dessas soluções funcione. Em contraste, os experimentos aqui descritos mostram que fazer coisas simples como evocar padrões morais na hora da tentação pode operar milagres para reduzir a conduta desonesta e potencialmente impedi-la por completo. Essa abordagem funciona mesmo que esses códigos morais específicos não façam parte do nosso sistema de crenças pessoais. Na verdade, está claro que lembretes morais tornam relativamente fácil induzir as pessoas a ser mais honestas – ao menos por um curto período.

Como interpretar tudo isso? Primeiro, precisamos reconhecer que a desonestidade é em grande parte motivada pela margem de manobra de cada pessoa e não pelo Modelo Simples do Crime Racional (SMORC). A margem de manobra sugere que, se quisermos reduzir significativamente a criminalidade, precisaremos achar um meio de mudar a forma como conseguimos racionalizar nossas ações.

Capítulo 3 – Cegos por nossas motivações

Uma causa comum dos conflitos de interesse é nossa predisposição a retribuir favores. Nós, humanos, somos criaturas profundamente sociais, de modo que, quando alguém nos ajuda de alguma forma ou nos dá um presente, costumamos nos sentir em dívida com a pessoa. Essa sensação pode afetar nossa visão, tornando-nos mais inclinados a tentar ajudar esse alguém no futuro.

Lobistas e indústria farmacêutica. Algumas pessoas e empresas entendem muito bem essa propensão à reciprocidade e, em consequência, dedicam bastante tempo e dinheiro a tentar gerar um sentimento de obrigação nos outros. Na minha opinião, a profissão que mais corporifica esse tipo de operação, ou seja, aquela que mais depende de criar conflitos de interesses, é a dos lobistas. Eles passam uma pequena fração de seu tempo revelando fatos às autoridades públicas conforme relatados por seus empregadores. No restante do tempo, tentam incutir nos políticos um sentimento de obrigação e reciprocidade, esperando por exemplo que eles retribuam ao votarem projetos de lei de seu interesse.

Os lobistas, porém, não estão sozinhos na busca incansável por conflitos de interesse; alguns outros profissionais poderiam competir de igual para igual com eles. Por exemplo, vejamos como os representantes das empresas farmacêuticas realizam suas atividades. A função de um representante é visitar médicos e convencê-los a comprar equipamentos e medicamentos para tratar distúrbios de saúde. De início, podem dar a um médico uma caneta grátis com seu logotipo, ou talvez um bloco de notas, uma caneca ou algumas amostras grátis de remédios. Esses pequenos brindes podem sutilmente influenciar os médicos a prescrever um medicamento com mais frequência – tudo porque sentem a necessidade de retribuir.

Você deve estar duvidando de que reformulações nesses contextos venham a acontecer. Quando as regulamentações por parte do governo ou de associações profissionais não se concretizam, nós, consumidores, precisamos reconhecer o perigo que os conflitos de interesses trazem consigo e fazer o possível para buscar prestadores de serviços com menos conflitos (ou nenhum, se possível).

Capítulo 4 – Por que chutamos o balde quando estamos cansados

Caso não tenha observado, nos dias estressantes é comum ceder à tentação e optar por uma alternativas de comida menos saudável Essa ligação misteriosa entre exaustão e consumo de comida calórica não é produto da sua imaginação. E é o motivo de muitas dietas morrerem sob a pressão do estresse e de as pessoas voltarem a fumar após uma crise.

Emoção x razão. A luta desse enigma tem a ver com a luta entre a parte impulsiva (ou emocional) e a parte racional (ou deliberativa) de nós mesmos. Não se trata de uma ideia nova: muitos livros (e artigos acadêmicos) influentes ao longo da história falaram sobre os conflitos entre desejo e razão. Tivemos Adão e Eva, tentados pela perspectiva do conhecimento proibido e por aquela fruta suculenta. Houve Ulisses, que sabia que seria seduzido pelo canto das sereias e sabiamente ordenou que sua tripulação tapasse os ouvidos com cera para abafar aquele chamado irresistível e o amarrasse ao mastro. Desse modo, Ulisses teve o melhor dos dois mundos: pôde ouvir o canto sem temer que seus homens afundassem o navio. E, numa das lutas mais trágicas entre emoção e razão, Romeu e Julieta, de Shakespeare, apaixonaram-se, mesmo com a advertência de frei Lourenço de que a paixão desenfreada traz apenas desgraça.

A ideia básica por atrás do esgotamento do ego é que resistir à tentação exige esforço e energia consideráveis. Pense na sua força de vontade como um músculo. Quando damos de cara com um frango frito ou um milk-shake de chocolate, nossa primeira reação é um instintivo “Eba, eu quero!”. Depois, enquanto tentamos superar o desejo, gastamos um pouco de energia. Cada decisão que tomamos para evitar a tentação requer algum grau de esforço (como levantar um peso uma só vez) e exaurimos nossa força de vontade ao usá-la repetidamente.

É verdade que não podemos evitar a exposição a todas as ameaças ao nosso autocontrole. Então, existe esperança para nós? Eis uma sugestão: se notamos que é bem difícil resistir a determinada tentação, uma boa estratégia é nos afastarmos da atração do desejo antes de estarmos perto o suficiente para sermos arrebatados. Isso porque é bem mais fácil evitar a tentação completamente do que vencê-la quando ela está olhando para você no balcão da cozinha. E, se não conseguimos fazer isso, podemos muito bem tentar agir sobre nossa capacidade de combater a tentação – talvez contando até 100, cantando uma música ou fazendo um plano de ação e o seguindo à risca.

Capítulo 5 – Porque usar produtos falsificados nos faz trapacear mais 

Em termos mais gerais, comecei a refletir sobre a relação entre o que usamos e como nos comportamos, o que me fez pensar sobre um conceito que os cientistas sociais chamam de autossinalização. A ideia básica por trás da autossinalização é que, a despeito do que costumamos pensar, não temos uma noção muito clara de quem somos. Em geral acreditamos que temos uma noção privilegiada de nossas preferências e personalidade, mas na realidade não nos conhecemos tão bem assim (e definitivamente tão bem quanto acreditamos). Em vez disso, observamos a nós mesmos do mesmo jeito que observamos e julgamos as ações das outras pessoas – inferindo das nossas ações quem somos e do que gostamos.

Por exemplo, imagine que você vê um pedinte na rua. Em vez de ignorá-lo ou dar dinheiro a ele, você decide comprar-lhe um sanduíche. A ação em si não define quem você é, sua moralidade ou seu caráter, mas você interpreta a ação como sinal de seu caráter compassivo e caridoso. Agora dotado dessa informação “nova”, você começa a acreditar mais intensamente em sua benevolência. Trata-se da autossinalização funcionando.

O mesmo princípio poderia também se aplicar aos acessórios da moda. Carregar uma bolsa Prada autêntica – ainda que ninguém mais saiba que é autêntica – poderia nos fazer sentir e agir de forma um pouco diferente do que quando carregamos uma bolsa falsificada. O que nos leva a perguntar: usar produtos falsificados consegue fazer com que nos sintamos menos legítimos? É possível que acessórios piratas nos afetem de formas inesperadas e negativas?

Com tudo isso em mente, como podemos combater nossa deterioração moral, o efeito “que se dane” e o potencial de que um ato transgressor resulte em efeitos negativos de longo prazo em nossa moralidade? Seja no negócio da moda ou em outros ramos, precisa ficar claro que um ato imoral pode tornar outro mais provável e que atos imorais em um domínio podem influenciar nossa moralidade em outros domínios.

Capítulo 6 – Enganando a nós mesmos 

Imagine que você está participando de um experimento semelhante ao anterior. Você se submeteu ao teste de oito perguntas e respondeu quatro corretamente (50%), mas, graças às respostas no rodapé da página, alegou que resolveu seis corretamente (75%). Ora, você acha que sua habilidade real está na faixa dos 50% ou acha que está na faixa dos 75%? Por um lado, você pode estar ciente de que usou o gabarito para aumentar sua pontuação e ter noção de que sua habilidade real está mais perto da marca dos 50%. Por outro lado, sabendo que foi pago como se realmente tivesse solucionado seis problemas, talvez você consiga se convencer de que as habilidade de solucionar tais perguntas está mais perto do nível de 75%.

É aí que entra a segunda fase do experimento. Após terminar o teste de matemática, o pesquisador pede que você preveja quão bem se sairá no próximo teste, em que terá que responder a 100 perguntas da mesma natureza. Dessa vez, está claro que não vai haver quaisquer respostas no rodapé da página (e, portanto, nenhuma chance de consultar o gabarito). Que desempenho você prevê que terá no próximo teste? Sua previsão se baseará em sua habilidade real na primeira fase (50%) ou na habilidade exagerada (75%)?

Na medida que uma visão otimista demais de nós mesmos forma a base de nossas ações, podemos presumir de maneira equivocada que as coisas vão se resolver da melhor forma e, assim, não tomar ativamente as melhores decisões. O autoengano pode também nos levar a “enfeitar” nossas biografias com, digamos, um diploma de uma universidade de prestígio, o que pode se tornar um grande transtorno quando a verdade acabar vindo à tona. E é claro que existe o custo geral do engodo: quando nós e aqueles à nossa volta são desonestos, começamos a suspeitar de todos e, sem confiar em ninguém, a vida se torna mais difícil em quase todos os sentidos.

Capítulo 7 – Criatividade e desonestidade

Existem bons motivos para tudo isso. A criatividade aumenta nossa capacidade de resolver problemas, abrindo portas para novas abordagens e soluções. É o que permitiu à humanidade reformular nosso mundo de formas (às vezes) benéficas, com invenções que vão dos sistemas de esgoto e água tratada aos painéis solares, e dos arranha-céus à nanotecnologia. Embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer, podemos agradecer à criatividade por grande grande parte de nosso progresso. Afinal, o mundo seria um lugar bem mais triste sem os desbravadores criativos, como Einstein, Shakespeare e Da Vinci.

Mas isso é apenas parte da história. Assim como nos permite conceber soluções inéditas para problemas difíceis, a criatividade também pode nos capacitar a desenvolver formas originais de contornar as regras, ao mesmo tempo que nos auxilia a reinterpretar as informações em causa própria. Ativar nossa mente criativa pode nos ajudar a forjar uma narrativa que nos permite tirar vantagem de tudo e criar histórias em que somos sempre os heróis, nunca os vilões. Se a chave de nossa desonestidade é nossa capacidade de nos julgarmos pessoas honestas e éticas enquanto nos beneficiamos da trapaça, a criatividade talvez nos ajude a contar histórias melhores – histórias que nos possibilitam ser ainda mais desonestos e mesmo assim nos acharmos pessoas maravilhosamente honestas.

Como o historiador (e também meu colega e amigo) Edward J. Balleisen descreve em um de seus livros, sempre que ocorre um grande avanço tecnológico nos negócios – seja pela invenção do serviço postal, do telefone, do rádio, do computador ou dos títulos lastreados em hipotecas –, tal progresso permite às pessoas se aproximarem das fronteiras tanto da tecnologia quanto da desonestidade. Somente mais tarde, depois que as capacidades, os efeitos e as limitações de uma tecnologia são estabelecidos, é que podemos definir as formas desejáveis e abusivas de usar essas ferramentas novas.

Capítulo 8 – A trapaça pode ser contagiosa

Uma coisa é se irritar com um bando de estudantes que enganam sua universidade por uns poucos dólares (embora mesmo essa desonestidade se acumule rapidamente). Outra coisa é quando a trapaça é institucionalizada em escala maior. Quando uns poucos privilegiados se desviam da norma, contagiam aqueles em volta, que, por sua vez, contagiam aqueles em volta deles, e por aí vai – o que suspeito ter ocorrido na Enron em 2001, em Wall Street, nos eventos que culminaram em 2008, além de em muitos outros casos.

É fácil imaginar o seguinte cenário: Bob, um operador financeiro conhecido do GiantBank, se envolve em transações suspeitas – cobrando exageradamente por alguns produtos financeiros, adiando a contabilização de prejuízos para o ano seguinte e assim por diante – e, no processo, ganha rios de dinheiro. Outros operadores do GiantBank ficam sabendo das manobras do colega.  Saem para almoçar e, em meio a uns drinques, discutem o que Bob vem fazendo. Na mesa ao lado, um pessoal do MegaBank ouve a conversa. A notícia se espalha.

Em relativamente pouco tempo fica claro para muitos outros operadores que Bob não é a única pessoa a manipular números. Além disso, eles o consideram membro do seu grupo. Para eles, manipular os números agora se torna um comportamento aceitável, ao menos dentro do domínio de “permanecer competitivo” e “maximizar o valor para os acionistas”.

De forma semelhante, considere o seguinte: um banco usa o dinheiro de resgate financeiro do governo para pagar dividendos aos seus acionistas (ou talvez o banco simplesmente mantenha o dinheiro em vez de emprestá-lo). Logo os CEOs de outros bancos começam a ver esse comportamento como apropriado. Trata-se de um processo fácil, um caminho escorregando ladeira abaixo. E é o tipo de coisa que acontece à nossa volta diariamente.

A boa notícia é que também podemos tirar vantagem do lado positivo do contágio moral. Como? Promovendo publicamente os indivíduos que resistem à corrupção. Sherron Watkins, da Enron, Coleen Rowley, do FBI, e Cynthia Cooper, da WorlCom, são grandes exemplos de pessoas que resistiram à má conduta em suas organizações e que em 2002 foram escolhidas pela revista Time como as personalidades do ano.

Capítulo 9 – Trapaça colaborativa

Jennifer, contadora pública certificada (CPA) num grande escritório de contabilidade, produzia relatórios anuais, formulários de referência e outros documentos que informavam os acionistas sobre a situação de suas empresas. Um dia, seu chefe pediu as demonstrações financeiras de um grande cliente. Jennifer e sua equipe fizeram o melhor para entregar a tarefa. Mas o chefe reclamou do serviço, dizendo que os números não estavam bons.  A ordem foi que fossem revisados, melhorados. Feita a revisão com números mais positivos, o humor do chefe melhorou…

Pense em Jennifer. Suponha que ela fosse uma pessoa leal e gostasse de se imaginar assim. Imagine também que ela realmente se importasse com seu chefe e os membros da equipe e quisesse sinceramente ajudá-los. Com base nessas considerações, ela pode ter decidido atender ao pedido do chefe ou mesmo levar seu relatório um passo mais longe, não por conta de quaisquer motivações egoístas, mas por se preocupar com o bem-estar do superior e se importar profundamente com os colegas da equipe. Em sua mente, números “ruins” talvez levassem o chefe e a equipe a perder o apoio do cliente e do escritório de contabilidade, de modo que a preocupação de Jennifer com seu grupo poderia levá-la a aumentar a magnitude de sua má conduta.

Essa tendência a nos importarmos com o próximo também pode possibilitar que sejamos mais desonestos em situações nas quais agir contra a ética beneficiará outros. A partir dessa perspectiva, podemos pensar na trapaça evolvendo outros como algo altruísta – em que, à semelhança de Robin Hood, enganamos porque somos pessoas boas que se importam com o bem-estar daqueles à nossa volta.

Claramente, não existe uma solução milagrosa para o problema complexo da desonestidade em ambientes de grupo. Em seu conjunto, creio que nossas descobertas têm sérias implicações para organizações, especialmente considerando a predominância do trabalho colaborativo em nossa vida profissional cotidiana. Também não há dúvida de que compreender melhor o grau e a complexidade da desonestidade em contextos sociais é um tanto desanimador. Ainda assim, ao entender as possíveis armadilhas envolvidas na colaboração, podemos tomar algumas providências para corrigir comportamentos desonestos.

Capítulo 10 – Um final semiotimista

Embora possa soar pessimista, o outro lado da moeda é que os seres humanos são, de modo geral, mais éticos do que prevê a teoria econômica padrão. Na verdade, vistos de uma perspectiva puramente racional (SMORC), não trapaceamos tanto quanto poderíamos.

Considere quantas vezes nos últimos dias você teve a oportunidade de cometer um ato desonesto sem ser pego. Talvez uma colega tenha deixado a bolsa sobre a mesa quando saiu para uma reunião longa. Ou um estranho numa cafeteria tenha pedido a você que olhasse seu notebook enquanto ia ao banheiro. Pode ser que o caixa do mercado não tenha cobrado por um produto no seu carrinho ou que você tenha passado por uma bicicleta sem cadeado numa rua deserta.

Em qualquer dessas situações, pelo Modelo Simples do Crime Racional, o certo seria você pegar o dinheiro, o notebook ou a bicicleta, sem falar no produto do mercado. No entanto, perdemos a grande maioria dessas oportunidades diariamente sem achar que deveríamos aproveitá-las – o que significa um bom começo em nossos esforços por melhorar nossa integridade moral.

Tudo isso significa que, embora seja importante ficar atento à desonestidade mais chamativa, provavelmente é ainda mais importante desencorajar as formas pequenas e mais corriqueiras de desonestidade – os desvios de conduta que nos afetam na maioria do tempo, tanto como perpetradores quanto como vítimas.

Capítulo 11 – Algumas reflexões sobre religião e honestidade/desonestidade

Ora, a religião tem muito a dizer sobre nossa luta contra uma variedade de problemas humanos, inclusive honestidade e moralidade. É claro que minha opção por buscar ideias na religião poderia também ser um reflexo de minha maturidade e minha idade (as pessoas se espiritualizam mais ao envelhecer). Independentemente do motivo – e de qualquer crença em Deus –, examinar esses textos de maneira mais ampla como um reflexo do pensamento e da sabedoria humanos poderia nos ajudar a lançar alguma luz sobre a honestidade, a desonestidade e seu lugar complexo na sociedade.

Vistas sob as lentes da ciência social, as religiões podem ser consideradas não apenas conjuntos de crenças especificas sobre Deus, mas também conjuntos prescritivos de lições e regras de conduta. Assim, os princípios religiosos desempenham um papel importante em direcionar as pessoas a se comportarem de modo a melhorar a convivência uns com os outros e visando metas de longo prazo em vez do interesse egoísta de curto prazo.

Por outro lado, a abordagem da religião é lidar direto com o período antes de trapacearmos e o período em que temos a oportunidade de trapacear. Primeiro, a religião tenta influenciar nossa mentalidade antes de sermos tentados, criando uma educação moral e – não esqueçamos – a culpa. O entendimento básico é que, se quisermos refrear a desonestidade, precisamos pensar em educação e calibrar a bússola moral em vez de ameaçar com punição após o fato consumado (algo sobre o qual muitas religiões também são bem claras). Segundo, as religiões procuram influenciar nossa mentalidade no momento da tentação, incorporando diferentes lembretes morais ao nosso ambiente. Aqui a ideia fundamental é que, uma vez dotados de uma bússola moral, convém mantê-la em bom estado de funcionamento, com ajustes apropriados em tempo real, se quisermos que opere com plena capacidade.

FICHA TÉCNICA:

Título: The (Honest) Truth about Dishonesty

Autor: Dan Ariely

Resenha: Rogério H. Jönck

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