Mil anos de história e evidências mostram que o progresso depende das escolhas que fazemos em relação às tecnologias. Cabe a nós usar a IA pelo bem da maioria.
Ideias centrais:
1 – A história nos mostra que não há relação direta entre a inovação e a distribuição de prosperidade. Fazer com que os ganhos da tecnologia cheguem a todos é uma decisão que passa por instâncias políticas, sociais e econômicas.
2 – O desenvolvimento atual da IA usa como base uma gigantesca captura de dados e foco em automação. Essa escolha é uma decisão estratégica da indústria, não algo inevitável. A preferência pela automação e pelos sistemas de vigilância se dá, por exemplo, em detrimento de um avanço da tecnologia de utilidade de máquina.
3 – Método de aprendizagem de IA não parte de hipóteses nem utiliza o método científico clássico de análise a partir de informação e experiência. A lógica em voga é coletar uma quantidade incomensurável de dados para, então, ao rastrear esse material, identificar objetos. O problema: a identificação é feita por previsão.
4 – Ao dar preferência à incorporação de uma base de dados gigantesca, o sistema acaba por utilizar exageradamente aspectos pouco relevantes da informação, distorcendo previsões e conclusões.
5 – Ao atuar em funções onde a expertise humana é um diferencial, como na comunicação social e solução de problemas, as máquinas tomam decisões por amostragem. Os autores chamam a performance insatisfatória nessas funções de “automação mais ou menos”.
6 – É cada vez mais comum que empresas utilizem padrões de produtividade de seus colaboradores sem levar em conta a própria variação natural de performance ao longo do dia. A Amazon, segunda maior empregadora dos Estados Unidos, utiliza essa estratégia, o que vem gerando insatisfação – os trabalhadores se dizem “tratados como robôs” – e aumento de acidentes de trabalho.
7 – Em contexto histórico que remonta aos primórdios da industrialização, os autores mostram como o advento de uma escola de pensamento administrativo voltado para o aumento de ganhos dos acionistas levou ao surgimento de um verdadeiro exército de gestores dispostos a cortar posições, notadamente gerenciais e administrativas. O desenvolvimento da IA também caminha por aí.
8 – A coisa mais importante em relação à tecnologia é a escolha. Vamos usar ferramentas digitais para vigiar os trabalhadores ou para dar-lhes novas funções produtivas? A tecnologia pode gerar prosperidade compartilhada ou acirrar a já incômoda desigualdade. Tudo depende de como os esforços de inovação serão dirigidos.
9 – A automação em larga escala dá poder a quem controla a tecnologia.
Autores:
Daron Acemoglu é professor de economia no MIT e autor do livro Por que as nações fracassam, escrito em parceria com James Robinson. Prosperidade, pobreza, desigualdade e crescimento econômico são seus temas de estudo.
Simon Johnson é professor de empreendedorismo no MIT e já atuou como economista-chefe do FMI. É autor de, entre outros, 13 bankers, sobre o fortalecimento de banqueiros e outras figuras do setor financeiro dos Estados Unidos após a crise de 2008.
Capítulo 1 – Controle sobre a tecnologia
Os autores fazem um apanhado histórico da produtividade e da incorporação da tecnologia nos processos de trabalho e citam John Maynard Keynes, o economista inglês que há 90 anos cunhou a expressão “desemprego tecnológico”. Estatísticas entram em cena para mostrar que o desemprego entre homens de 25 a 54 anos nos Estados Unidos dobrou dos anos 1960 para cá. Trabalhadores sem formação universitária são os que mais são impactados.
O capítulo fala sobre os ganhos de produtividade em diversas indústrias, como a automobilística, até chegar aos dias atuais, em que estratégias de automação e offshoring multiplicam os resultados, mas nada fazem para distribuir prosperidade. Os autores introduzem o conceito de “automação mais ou menos”, em que a troca de homens por máquinas gera pouca repercussão na criação de prosperidade e de novos empregos em outras áreas.
“A coisa mais importante em relação à tecnologia é a escolha”, dizem os autores, como um mantra. “Vamos usar ferramentas digitais para vigilância? Para automação? Ou para criar novas funções produtivas para os trabalhadores?”
Capítulo 2 – Visão de canal
Em esforço de compreensão histórica, os autores lançam mão de seu primeiro benchmarking. Cumpre mostrar como a inovação é insuflada e desenvolvida por meio de uma visão dirigida, com o objetivo de beneficiar um estrato diminuto de atores.
O francês Ferdinand de Lesseps, que no final do século 19 propôs a construção de um projeto de engenharia de escala inusitada, o Canal do Panamá, acreditava-se indutor de progresso e prosperidade para executores, usuários e financiadores. Ele usava o Canal de Suez como exemplo, projeto esse que, obviamente, não beneficiou os operários.
Ao longo do capítulo o “making-of” da construção dos dois canais é detalhado. É importante ressaltar que, no Reino Unido, críticos de Lesseps viam Suez sendo feito basicamente com trabalho escravo. Para os acionistas, entretanto, o projeto valeu a pena, já que enormes dividendos foram distribuídos a eles.
A lição: a sensibilidade de Lesseps era incrivelmente moderna e futurista. Ele tinha paixão por projetos colossais, era um evangelista da tecnologia e tinha fé no investimento privado. Ele também era indiferente ao destino dos que “não têm voz”. Como uma visão destas prevalece? O “poder social” é a resposta.
Capítulo 3 – Poder de persuadir
Ferdinand de Lesseps, o heroi do capítulo anterior, é definido como alguém com o poder de persuadir. Trata-se de uma pessoa assertiva, confiante e capaz de determinar sua agenda. Poder, definem os autores, é a capacidade de um indivíduo ou de um grupo de pessoas de atingir seus objetivos. Num salto para 2008, chega-se à ideia da proteção do mercado financeiro. Trata-se, afinal, de um sistema cuja quebra teria consequências supostamente desastrosas para a economia global, desta forma é necessário proteger os grandes bancos e outros medalhões do mercado financeiro. Essa narrativa poderosa sempre foi obedecida pelos atores políticos.
O poder de persuasão de gente como Ferdinand de Lesseps é explicado pela “tendência das pessoas a ouvir e a aprender com quem é mais eminente na sociedade”.
Capítulo 4 – Cultivando a pobreza
A história da desigualdade começa a desfilar. No Reino Unido medieval, a realeza, a aristocracia e o alto episcopado representavam apenas 5% da população, mas eles tinham direito à maior parte da receita da nação. Os impostos iam para a igreja, que erguia catedrais e mosteiros. A capacidade de persuasão da igreja era ampliada por sua “ligação com o transcendental”.
Considerando que a distribuição desigual de poder social explicava a discrepância entre elite e camponeses na Idade Média, o livro chega até os dias de hoje, com um olhar na inovação tecnológica. A maneira como a tecnologia é usada é sempre entrelaçada com os interesses de quem detém o poder.
Mesmo nos tempos medievais, os detentores do poder usavam da coerção para esmagar a concorrência. O abade de Bury St Edmunds, na Inglaterra, obrigou um moinho privado a ser demolido em 1191 para não prejudicar os negócios de sua abadia. Nos primórdios da agricultura e de algumas civilizações, como a egípcia, a hierarquia estabelecida com base em cosmologias sempre serviu para manter os privilégios da elite sobre a massa. As inovações tecnológicas, como as da agricultura, ajudaram a solidificar esse cenário.
Capítulo 5 – Um tipo de revolução
Em dois milênios, a população da Terra cresce seis vezes. Na maior parte desse período, em diversas sociedades, a classe detentora do poder econômico não é mais de 10% da população. O século 19 assiste a um desabrochar de tecnologias. Houve, com isso, o desenvolvimento de uma nova relação entre indústria e ciência, com as empresas mais proeminentes mantendo departamentos de P&D.
O progresso tornava-se sinônimo de inovação e seus protagonistas surgiam inesperadamente das classes menos privilegiadas. Um deles, George Stephenson, filho de pais analfabetos, é o grande responsável pelo florescer da indústria ferroviária. Ele e outros, como James Watt e Richard Arkwright, eram homens de educação formal incompleta.
Os autores tentam então explicar a razão de o Reino Unido protagonizar a Revolução Industrial e, após descartar a geografia insular, a adoção do protestantismo e o laissez-faire, chegam às transformações sociais. Empreendedores vindos da classe média e o domínio da tecnologia viraram o jogo. De 226 empreendedores de grandes indústrias por volta de 1850, menos de 10% eram da elite. Quando eles enriqueceram, porém, passaram a adotar uma visão elitista, seja pela valorização da propriedade e da riqueza, seja pelo desdém pelos subordinados.
Capítulo 6 – Baixas do progresso
Em meados do século 19, a exploração do carvão era uma das atividades econômicas mais importantes do Reino Unido, com mais de 200 mil pessoas trabalhando nas minas. De 20% a 40% desse contingente era formado por crianças. Um cenário de baixa qualidade de vida de toda a classe trabalhadora, que vivia em condições tão ou mais insalubres do que antes da Revolução Industrial. A taxa de mortalidade, especialmente devido a doenças pulmonares, aumentou rapidamente nas cidades industriais. Em Birmingham, ela dobrou de 1831 para 1841. Com a industrialização veio o desastre de saúde pública.
A situação mudou no final do século 19, com os salários crescendo acima da produtividade por trabalhador, e os regimes de trabalho se tornando menos exigentes. A expectativa de vida cresceu de 40 para 49 anos, de meados para o fim do século. A explicação vem de uma mudança na direção da finalidade da tecnologia. Isso se deu pelo desenvolvimento da indústria ferroviária, que trouxe ganhos para outros setores, inclusive pelo barateamento do custo de transporte de pessoas e equipamentos.
Produzir mais não tem como consequência direta, para o trabalhador, ganhar mais. Ter poder de barganha é fundamental. Os autores mergulham na administração colonial britânica da Índia, em que a introdução das ferrovias originou ganhos que não foram acompanhados por outros setores. As ferrovias, aliás, foram utilizadas como instrumento de opressão, deslocando as forças de repressão britânicas. Os benefícios da tecnologia são distribuídos principalmente para os socialmente poderosos.
Capítulo 7 – O caminho da contestação
O número de patentes registradas nos Estados Unidos foi muito significativo nos anos 1910. A produção de objetos standard, de menor custo, foi o motor dessa inovação. Quando a eletricidade passou a ser usada no processo industrial surgiu a demanda por funcionários de nível gerencial, com conhecimentos administrativos e de engenharia.
Em 1940, esses profissionais já representavam 21% da massa trabalhadora norte-americana. Nessa época, Henry Ford criou o que seria conhecido como “linha de produção” (ou fordismo), em que o valor da diária dos trabalhadores pulou de US$ 2,34 para US$ 5. Ele não agia por altruísmo, mas para inibir o turnover em sua empresa.
Esse “capitalismo do bem-estar” seria reforçado pela crise da bolsa de 1929 e pela presidência de Franklin Roosevelt. Além de intervir na economia, Roosevelt instituiu o salário mínimo, transferindo renda e injetando recursos na economia. A desigualdade caiu nos anos 1940. O 1% mais rico da população já não ficava com 22% da riqueza nacional, mas com 13%.
Mais uma vez, os autores se perguntam qual o “tempero secreto” da distribuição de prosperidade destes anos. A resposta é a direção da tecnologia, que criou novas responsabilidades e funções para trabalhadores de expertises distintas.
Capítulo 8 – Dano digital
Os pioneiros da revolução digital se encontravam no nono andar do prédio de Tech do MIT, onde criaram uma “ética hacker” que mais tarde chegaria ao Vale do Silício, na qual a descentralização e a liberdade eram centrais.
Nos anos 1980, nos Estados Unidos, as corporações se organizaram contra sindicatos e contra os controles estatais, além de imprimir uma visão de maximização de retorno e do lucro para os acionistas, quando então a comunidade tecnológica aderiu a essa nova ideologia, distanciando-se dos primórdios libertários.
A partir daí a desigualdade voltaria a dar as cartas. O 1% mais rico passou a desfrutar de 19% da riqueza em 2019, quase o dobro dos 10% de 1980. Nove entre dez crianças nascidas nos anos 1940 tiveram salários maiores que seus pais; a proporção caiu para 50% no caso de crianças nascidas em 1984.
Na década de 1980, veio a orientação de redução de custos e prioridade na automação, o que reduziria vagas de emprego, diminuindo o poder de barganha dos trabalhadores. Esse movimento orientou a tecnologia na direção da automação. Pesquisas recentes reputam à automação ¾ das razões para o incremento da desigualdade entre grupos demográficos distintos nos Estados Unidos.
Nos anos 1970, 52% dos profissionais dos EUA ocupavam funções gerenciais ou de caráter administrativo. Em 2018, eles eram 33%. Os autores consideram que o avanço da automação foi mais importante do que o “fator China” para eliminar empregos no país.
Há ainda um desdobramento em termos de saúde pública, com o avanço das “mortes por desespero”, na expressão dos economistas Angus Deaton e Anne Case. Tratam-se de mortes prematuras causadas por suicídio, abuso de drogas ou álcool, todas situações derivadas da falta de trabalho.
Por fim, os autores chegam à ideia central: a de que a tecnologia pode mudar sua direção. Se ela incrementa a desigualdade, é resultado das escolhas que as corporações e as pessoas de poder fazem.
Capítulo 9 – Briga artificial
A consultoria McKinsey e a revista The Economist dizemque as preocupações a respeito da automação da IA são exageradas. A disrupção fará vítimas, mas isso é “inevitável”, acreditam. Para compensar, magnatas da tecnologia aliviam a culpa com grandes ações filantrópicas. Tudo isso faz parte do que os autores chamam de “ilusão da IA”. Tecnologias digitais poderiam ser direcionadas para objetivos globais da humanidade. No entanto, a IA tem captado dados em grande escala, com benefícios discutíveis.
Considera-se que a IA será muito útil na substituição do trabalho pouco criativo e rotineiro, mas a questão é que apenas uma fração do trabalho humano é rotineiro. A maior parte dos problemas que as pessoas resolvem envolve experiência, conhecimento e flexibilidade.
Uma das ondas recentes de euforia com a IA veio com a chamada “IA estreita”, que fazia com que a máquina tivesse maestria em ações específicas: identificação de objetos numa imagem, tradução de idiomas, ou perícia para jogar xadrez. Ao invés de usar caminhos de raciocínio lógico para fazer a IA se aproximar da cognição humana, o rumo escolhido foi o da previsão e da classificação a partir de uma base gigantesca de dados.
Um claro problema dessa abordagem é que a aprendizagem não parte de hipóteses claras de relação causal. Os pesquisadores, por exemplo, não especificam quais são os componentes relevantes de um objeto a ser identificado. O cientista de IA Alberto Romero disse: “Se você trabalha com IA, passa o tempo a coletar dados, limpar dados, classificar dados, separar dados e dar valor aos dados. Tudo para que o modelo diga: ‘isto é um gato’.”
Capítulo 10 – Freios à democracia
A tenista profissional chinesa Peng Shuai postou em novembro de 2021 na rede Weibo que havia sido assediada sexualmente. Em 20 minutos, a postagem foi censurada e apagada, desaparecendo para sempre da Internet. Consta que o governo chinês gasta US$ 6,6 bi anualmente para vigiar e censurar as ações online de seus cidadãos. Há ainda um investimento massivo em IA com fins de vigilância. Várias das grandes companhias chinesas de tecnologia como Ant, Huawei e as de IA SenseTime e CloudWalk colaboram com o governo central para desenvolver ferramentas de vigilância.
A minoria étnica uigur, da província de Xinjiang, tem sido particularmente alvejada por essas ferramentas, mas programas de reconhecimento facial estão por todo o país, e um recente sistema de crédito nacional pode controlar as ações dos cidadãos, inclusive suas manifestações em redes sociais. O protótipo de uma ditadura digital.
O software espião israelense Pegasus, que lê mensagens de texto, ouve telefonemas e pirateia senhas, foi utilizado por governos autocráticos como os da Arábia Saudita e Hungria. Mas democracias ocidentais, como o Brasil, sob Bolsonaro, e o México, também o utilizaram. No México, o que de início era uma arma contra os “narcos” rapidamente se voltou contra jornalistas e oposicionistas. As democracias morrem com a falta de transparência. Agora brigam sob a luz oriunda das IAs modernas. O historiador israelense Yuval Noah Harari diz que a tecnologia favorece a tirania.
Capítulo 11 – Redirecionando a tecnologia
No final do século 19, indústrias como a ferroviária, de aço, petróleo e financeira geraram lucros jamais vistos. Carteis se formaram com a anuência política. Nos Estados Unidos, na década de 1890, a Standard Oil controlava 90% do refino de petróleo. Políticos não faziam frente a esse poder. Como disse o senador Mark Hamma: “Há duas coisas que realmente importam na política. A primeira é o dinheiro, e a segunda… a segunda eu não consigo me lembrar o que é”.
O rumo começou a mudar nos anos 1910, com uma sucessão de greves e avanços nas leis eleitorais. Vieram o veto ao financiamento privado de campanhas e o voto direto para o Senado. Histórias como essas ajudam a sugerir um conjunto de ações que podem redirecionar o avanço da tecnologia. Os autores propõem que se mude a narrativa, como a da inexorabilidade do avanço do IA rumo à automação e à vigilância; depois, que poderes de contraposição ao status quo sejam criados; e que exista uma ação política institucional, via legisladores.
Em relação ao desenvolvimento da IA, as escolhas sobre o uso da tecnologia deveriam ser parte integrante do critério de investimento. Quem financia deve exigir transparência sobre os efeitos da tecnologia. Eles devem perguntar se ela vai gerar mais automatização ou, ao contrário, criar novas funções e habilidades; se ela vai vigiar ou empoderar os trabalhadores; e de que forma ela afetará o discurso político. Não são decisões que os gestores deveriam tomar pensando apenas no lucro.
Há ainda que se encontrar uma maneira de equilibrar o poder das empresas. Tantos dados nas mãos de poucas plataformas levam ao desequilíbrio de poder entre elas, seus competidores e usuários.
Em suma, a mudança da direção da tecnologia é possível com a troca de narrativa, a organização da sociedade civil e investimentos sendo destinados para longe da automação e da vigilância. O recado final do livro: “Ainda acreditamos que a história da tecnologia está por ser escrita.”
Ficha técnica:
Título original: Power and Progress: our thousand-year struggle over technology and prosperity
Autores: Daron Acemoglu e Simon Johnson
Primeira edição: PublicAffairs
Resumo: Paulo Vieira
Edição: Monica Miglio Pedrosa