Autor: Luc Ferry
Ideias centrais:
1 – Além do conhecimento sobre o mundo, precisamos nos interessar pelas outras pessoas, por aquelas com as quais vamos atuar. A convivência com o outro e as regras a adotar nessa interação fazem parte de outra dimensão da filosofia, a ética.
2 – Embora a doutrina cristã da salvação não seja filosófica, não deixará de haver, no seio do cristianismo, lugar para o exercício da razão. Ao lado da fé, a inteligência racional se exerce em duas direções: a compreensão dos textos evangélicos e o conhecimento e explicação da natureza.
3 – Na filosofia moderna, se você quer ter uma ideia do que a fundamentação dos valores no homem significa no plano moral, basta pensar na famosa Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Ela instala o homem no centro do mundo, enquanto para os gregos o centro era o próprio mundo.
4 – A conciliação entre forças reativas e ativas é, aos olhos de Nietzsche, o novo ideal, o ideal aceitável, porque não é como todos os outros, falsamente exterior à vida, mas, ao contrário, explicitamente sustentado nela. É o que Nietzsche chama de grandeza.
5 – Heidegger é o primeiro que soube dar ao mundo de hoje – que ele chama de “mundo da técnica” – uma interpretação que possibilitasse compreender por que é impossível permanecer na atitude nietzschiana, pelo menos se não quisermos nos tornar cúmplices da realidade da globalização capitalista.
Sobre o autor:
Luc Ferry, nascido em Paris, em 1951, é filósofo e um dos principais defensores do Humanismo Secular, visão de mundo que se contrapõe à religião, por conta do uso da razão crítica, em vez da fé, para os problemas mais importantes. Ele foi ministro da Educação na França (2002 – 2004).
Introdução
De férias num país onde a noite cai às seis horas, alguns amigos pediram que eu improvisasse um curso de filosofia para pais e filhos. O exercício obrigou-me a ir diretamente ao essencial, como até então eu nunca pudera fazer, sem recorrer a palavras complicadas, a citações eruditas ou alusões a teorias desconhecidas pelos meus ouvintes. À medida que eu avançava na narração da história das ideias, dei-me conta de que não existia nas livrarias um curso equivalente ao que estava construindo, bem ou mal, sem o auxílio de minha biblioteca.
Encontram-se, naturalmente, inúmeras histórias de filosofia. Algumas são mesmo excelentes, mas as melhores são áridas demais para alguém saído da universidade, e ainda mais para quem ainda não entrou nela; outras não são interessantes.
Entretanto, adquiri, ao longo dos anos, a convicção de que para todo indivíduo, inclusive para os que não a veem como uma vocação, é valioso estudar ao menos um pouco de filosofia, nem que seja por dois motivos bem simples.
O primeiro é que, sem ela, nada podemos compreender do mundo em que vivemos. É uma formação das mais esclarecedoras, mais ainda do que a das ciências históricas. Por quê? Simplesmente porque a quase totalidade de nossos pensamentos, de nossas convicções, e também de nossos valores, se inscreve, sem que o saibamos, nas grandes visões do mundo já elaboradas e estruturadas ao longo da história das ideias.
Além do que se ganha em compreensão, conhecimento de si e dos outros por intermédio das grandes obras da tradição, é preciso saber que elas podem simplesmente ajudar a viver melhor e mais livremente. Como dizem vários pensadores contemporâneos, cada um a seu modo, não se filosofa por divertimento, nem mesmo apenas para compreender o mundo e conhecer melhor a si mesmo. Às vezes o fazemos para “salvar a nossa pele”. Há na filosofia elementos para vencermos os medos que paralisam a vida, e é um erro acreditar que a psicologia poderia, nos dias de hoje, substituí-la.
Quando uma teoria cientifica se revela falsa, quando é refutada por outra visivelmente mais verdadeira, cai em desuso e não interessa a mais ninguém – à exceção de alguns eruditos. As grandes respostas filosóficas dadas desde os primórdios à interrogação sobre como se aprende a viver continuam, ao contrário, presentes.
Capítulo 1 – O que é a filosofia?
Há uma abordagem muito simples, mas na qual se encontra latente a interrogação central de toda filosofia: o ser humano, diferentemente de Deus – se é que ele existe -, é mortal ou, para falar como os filósofos, é um ser “finito”, limitado no espaço e no tempo. Mas, diferentemente dos animais, é o único que tem consciência de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem ama, também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação que, a priori, é inquietante, e até mesmo absurda e insuportável. Certamente, é por isso que ele se volta de imediato para as religiões que lhe prometem “salvação”.
Abra um dicionário e verá que “salvação” designa primeiramente e antes de tudo “o fato de ser salvo, de escapar a um grande perigo ou a uma grande desgraça”. Muito bem. Mas de que catástrofe, de que perigo medonho as religiões pretendem nos fazer escapar? Você já sabe a resposta: é da morte que se trata. Eis por que todas elas vão se esforçar, de diferentes formas, para nos prometer a vida eterna, para nos garantir que um dia reencontraremos aqueles que amamos – parentes e amigos, irmãos e irmãs, esposos e esposas, filhos e netos, dos quais a existência terrestre, inelutavelmente, vai nos separar.
Mas, para aqueles que não estão convencidos, para aqueles que duvidam da veracidade dessas promessas, o problema, é claro, permanece. E é justamente aí que, por assim dizer, entra a filosofia.
Tanto é que a própria morte não é uma realidade tão simples quanto se pensa habitualmente. A questão é crucial se você quer compreender o campo da filosofia. Ela não se resume ao “fim da vida”, a uma parada mais ou menos brutal da nossa existência. Para se tranquilizarem, alguns sábios da Antiguidade diziam que não se deve pensar nela, pois, das duas uma: ou estou vivo, e a morte, por definição, não está presente, ou então ela está presente e, também por definição, eu não estou presente para me afligir! Por que, nessas condições, se preocupar com um problema inútil?
Mas é justamente aí que religião e filosofia divergem, de maneira fundamental.
Filosofia e religião são dois modos de abordar a questão da salvação.
Como de fato operam as religiões em face da ameaça suprema que elas dizem que podemos superar? Basicamente pela fé. É ela, e somente ela, na verdade, que pode fazer derramar sobre nós a graça de Deus: se você acredita em Deus, Ele o salvará, dizem elas. Para isso, exigem antes de tudo uma outra virtude, a humildade, que, segundo elas, se opõe à arrogância e à vaidade da filosofia. Isso é o que não deixam de repetir os maiores pensadores cristãos, de Santo Agostinho a Pascal.
Por que essa acusação lançada contra o livre pensamento? Por que este também pretende nos salvar, mas por nossas próprias forças e em virtude apenas da nossa razão. Eis aí, pelo menos do ponto de vista religioso, o orgulho filosófico por excelência, a audácia insuportável perceptível desde os primeiros filósofos, desde a antiguidade grega, vários séculos antes de Cristo.
Em outras palavras, se as religiões se definem como “doutrinas da salvação” por um Outro, pela graça de Deus, as grandes filosofias poderiam ser definidas como doutrinas da salvação por si mesmo, sem a ajuda de Deus.
Essas duas questões, a da natureza do mundo e a dos instrumentos de conhecimento de que dispõem os humanos, constituem também o essencial da parte teórica da filosofia.
É evidente que, além do campo, além do conhecimento do mundo e da história na qual nossa existência acontece, precisamos nos interessar pelos outros humanos, por aqueles com os quais vamos atuar. Como viver com o outro, que regras adotar fazem parte de outra dimensão da filosofia: a ética.
Mas por que se esforçar para conhecer o mundo e sua história, por que se esforçar para viver em harmonia com os outros? Qual a finalidade ou o sentido de todos esses esforços? É preciso que tudo isso tenha um sentido? Todas essas questões e outras da mesma ordem nos remetem à terceira parte da filosofia, a que concerne à questão da salvação ou da sabedoria.
Capítulo 2 – Um exemplo de filosofia antiga (o amor à sabedoria segundo os estoicos)
Gostaria agora de lhe mostrar, por meio de seus aspectos fundamentais, como uma filosofia, no caso o estoicismo, pode, diferentemente das religiões, lançar o desafio da salvação. Como pode, simplesmente pelos caminhos da razão, tentar trazer respostas à necessidade de vencer os medos nascidos da finitude. Nesta apresentação, seguirei os três grandes eixos sobre os quais acabei de falar: teoria, ética e sabedoria.
1) Teoria: a contemplação da ordem cósmica. Para os estoicos, de fato, a the-oria consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é “divino” no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
2) Ética: uma justiça que toma a ordem cósmica como modelo. Que ética corresponde à teoria que acabamos de descrever brevemente. A resposta não contém nenhuma dúvida: juntar-se ou ajustar-se ao cosmos, eis, aos olhos dos estoicos, a palavra de ordem de toda ação justa, o princípio mesmo de toda a moral e de toda a política. Por que a justiça é primeiramente justeza: assim como um ebanista ou um luthier ajusta uma peça de madeira num conjunto maior, um móvel, ou um violino, não temos nada melhor a fazer além de tentar nos ajustar à ordem harmoniosa e boa que a teoria acaba de nos desvendar. O que esclarece ainda, diga-se de passagem, o sentido da atividade teórica para os filósofos. O conhecimento não é inteiramente desinteressado, como você pode ver, já que propicia uma ética.
Como já dizia Crisipo, um dos expoentes do escola estoica: “Não há outro meio ou meio mais apropriado para se chegar à definição das coisas boas ou más, à virtude ou à felicidade, do que partir da natureza comum e do governo do mundo. Cícero vai no mesmo diapasão: “Quanto ao homem, ele nasceu para contemplar [theorein] e para imitar o divino mundo… o mundo possui a virtude, é sábio e, consequentemente, Deus” (Da Natureza dos Deuses, 422). Daí se vê que não é nosso julgamento sobre o real, mas o próprio real que, enquanto divino, se revela como o fundamento de valores éticos e jurídicos.
3) Do amor à sabedoria à prática da sabedoria: a morte não é para ser temida, ela é apenas uma passagem, pois somos um fragmento do cosmos. Para os estoicos, assim como para todos os filósofos, há um “além” da moral, termo que vem do grego soterios, que simplesmente quer dizer “salvação”. Ora, eu lhe disse que ela se concebe em relação à morte, em relação a essa “finitude” que nos leva, uma hora ou outra, a nos interrogarmos sobre o caráter irreversível do curso do tempo e, consequentemente, sobre o melhor uso que podemos fazer dele.
Capítulo 3 – A vitória do cristianismo sobre a filosofia grega
Apesar de tudo, segundo a definição que eu mesmo dei da filosofia no início deste livro, não deveria incluir um capítulo dedicado ao cristianismo. Não apenas a noção de “filosofia cristã” dá a impressão de ficar “à margem do tema”, mas parece até contraditória com o que expliquei longamente, já que a religião é exemplo de uma busca da salvação não filosófica, porque é realizada por Deus, pela fé, e não pelo indivíduo e pela razão. Então, por que falar dela aqui?
Em virtude de quatro razões muito simples que merecem uma breve explicação:
A primeira, como sugeri no fim do capítulo anterior, é que a doutrina cristã da salvação, embora fundamentalmente não filosófica, até mesmo antifilosófica, vai competir com a filosofia grega. Vai, por assim dizer, aproveitar-se das lacunas que enfraquecem a resposta estoica sobre a questão da salvação para subvertê-la internamente. Vai, até, alterar o vocabulário filosófico em seu próprio proveito, dar-lhe significações novas, religiosas, e propor uma resposta inédita, inteiramente nova, para a questão de nossa relação com a morte e com o tempo – o que lhe permitirá suplantar durante séculos, quase que sem restrições, as respostas da filosofia. Merece, portanto, nosso interesse.
A segunda razão é que, embora a doutrina cristã da salvação não seja filosófica, não deixará de haver, no seio do cristianismo, lugar para o exercício da razão. Ao lado da fé, a inteligência racional vai entrar no modo de se exercer pelo menos em duas direções: por um lado, para compreender os grandes textos evangélicos, quer dizer, para meditar e interpretar a mensagem de Cristo, mas, por outro, para conhecer e explicar a natureza, que, enquanto obra de Deus, deve certamente trazer em si algo como marca de seu criador. Assim, dá para compreender que vai haver no seio do cristianismo um lugar subalterno e modesto para um momento de filosofia.
A terceira razão decorre diretamente das duas primeiras: não há nada mais esclarecedor para se compreender a filosofia do que compará-la ao que ela não é e ao que ela se opõe radicalmente, embora lhe seja tão próximo, ou seja, a religião. Os Evangelhos, o quarto em particular redigido por João, comprova certo conhecimento da filosofia grega, especialmente do estoicismo.
Por fim, existem no conteúdo do cristianismo – especialmente no plano moral, as ideias que, mesmo para os incrédulos, têm ainda hoje enorme importância – ideias que, uma vez separadas das suas fontes puramente religiosas, vão adquirir tal autonomia que serão retomadas pela filosofia moderna, e mesmo por ateus. Por exemplo, a ideia de que o valor moral de um ser humano não depende de seus dons ou de seus talentos naturais, mas do uso que ele faz deles, de sua liberdade e não de sua natureza, foi oferecida à humanidade pelo cristianismo.
A virada crucial da filosofia grega para o cristianismo é descrita desde a segunda metade do século II depois de Cristo (no ano de 160, para ser exato) numa obra do primeiro Pai da Igreja, São Justino. Trata-se de um diálogo com um rabino, sem dúvida Trifão, que Justino conheceu em Éfeso. O emocionante no livro de Justino é que escreve de modo incrivelmente pessoal para a época. Justino conhece bem a filosofia grega e se preocupa em situar a doutrina cristã da salvação, comparando-a com as principais obras de Platão, de Aristóteles e dos estoicos. Mas, sobretudo, ele conta como ‘testou para nós” as diferentes doutrinas pagãs da salvação, como e por que ele foi sucessivamente estoico, aristotélico, pitagórico e fervoroso platônico antes de se tornar cristão.
Capítulo 4 – O humanismo ou o nascimento da filosofia moderna
Examinamos, juntos, o modo como a doutrina cristã superou a filosofia grega, e como, para conseguir a salvação, um cristão devia inicialmente, entrar em contato com o Verbo encarnado na humildade da fé; em seguida, observar seus mandamentos no plano ético e, por fim, praticar o amor em Deus ao mesmo tempo que o amor de Deus, para que com seus próximos pudesse entrar no reino da vida eterna.
O mundo moderno vai nascer com o desmoronamento da cosmologia antiga e com o nascimento de uma extraordinária reavaliação das autoridades religiosas. Esses dois movimentos possuem, se remontamos à sua raiz, uma origem intelectual comum (mesmo que outras causas mais, materiais, econômicas e, sobretudo, políticas, tenham contribuído para a dupla crise): em menos de um século e meio, uma revelação científica sem precedente na história da humanidade vai acontecer na Europa. Que eu saiba, nenhuma civilização conheceu ruptura tão profunda e tão radical em sua cultura.
Essa ruptura e consequente desenvolvimento intelectual podem ser visualizados em três grandes eixos:
No plano teórico: como pensar o mundo, como compreendê-lo, mesmo que simplesmente para poder se situar nele, se ele não é mais acabado, ordenado e harmonioso, mas caótico, como nos ensinam os novos físicos? Um dos maiores historiadores da ciência, Alexandre Koyré, descreveu tão bem essa revolução científica dos séculos XVI e XVII, que sugiro que você mesmo o leia. Segundo ele, ela está simplesmente na destruição da ideia de cosmos […], da destruição do mundo concebido como um todo acabado e bem-ordenado, no qual a estrutura espacial encarnava a hierarquia de valores e de perfeição… e da substituição deste por um Universo indefinido, e mesmo infinito, não comportando mais nenhuma hierarquia natural, e unido apenas pela identidade das leis que o regem em todas as partes.
Essa nova visão de mundo não passou despercebida ao poeta John Donne. Em 1611, ele escreveu, depois de ter tomado conhecimento dos princípios da revolução copernicana:
A nova filosofia torna tudo incerto
O elemento do fogo está completamente extinto
O sol se perdeu, e a terra; e ninguém hoje
Pode mais nos dizer onde encontrá-la […]
Tudo está em pedaços, toda coerência desaparecida.
Nenhuma relação justa, nada se ajusta mais.
No plano ético, a revolução teórica possui um efeito tão evidente quanto devastador: não tendo o universo mais nada de um cosmos, fica impossível considerá-lo um modelo a ser imitado no plano moral. Mas se, além disso, o próprio cristianismo vacila em suas bases, se a obediência a Deus não é mais indiscutível, onde procurar os princípios de uma nova concepção das relações entre os homens, um novo fundamento da vida comum? Esclarecendo: será necessário empreender de A a Z a reforma da moral que tinha servido de modelo durante séculos.
Quanto à doutrina da salvação, é inútil insistir: você vê que, pelas mesmas razões, a dos Antigos, bem como a dos cristãos, não é mais fiável para espíritos esclarecidos, pelo menos tal como elas eram, sem reformulação.
Se você quer ter uma ideia do que essa fundamentação dos valores no homem significa no plano moral, basta pensar na famosa Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, que sem dúvida alguma é a imagem exterior mais visível e mais conhecida dessa revolução sem precedente na história das ideias. Ela instala o homem no centro do mundo, enquanto para os gregos era o próprio mundo que era, de longe, essencial. Ela faz dele não apenas o único ser sobre a Terra, verdadeiramente digno de respeito, mas também propõe a igualdade de todos os seres humanos, sejam eles ricos ou pobres, homens ou mulheres, brancos ou negros… Nisso, a filosofia moderna, para além das diversidades das correntes que a compõem, é em primeiro lugar e antes de tudo um humanismo.
Com efeito, é a Kant e aos republicanos franceses que se aproximam dele que caberá extrair, de modo sistemático, as duas consequências morais mais marcantes da nova definição rousseauniana do homem pela liberdade: a ideia de que a virtude reside na ação ao mesmo tempo desinteressada e orientada não para o interesse particular e egoísta, mas para o bem comum e “universal” – quer dizer, falando simplesmente para o que não vale apenas para mim, mas também para todos os outros.
Capítulo 5 – A pós-modernidade
Os pós-modernos vão atacar duas das mais importantes convicções que animavam os modernos do século XVI ao XIX: aquela segundo a qual o ser humano seria o centro do mundo, o princípio de todos os valores morais e políticos; aquela que considera a razão um formidável poder libertador, e que, graças ao progresso das “Luzes”, seremos, enfim, mais livres e felizes.
A filosofia pós-moderna vai contestar esses dois postulados. Ela será ao mesmo tempo crítica do humanismo e do racionalismo. Sem sombra de dúvida, é em Nietzsche que ela vai atingir seu ponto culminante. Por outro lado, qualquer que seja nossa posição – e você verá que é possível fazer restrições a Nietzsche -, o radicalismo, até a violência de seus ataques contra o racionalismo e o humanismo só se igualam à genialidade com que ele soube apresentá-los.
A ciência moderna, fruto do espírito crítico e da dúvida metodológica, destruiu as cosmologias e enfraqueceu consideravelmente, pelo menos num primeiro momento, as bases da autoridade religiosa. É um fato. Por isso, como vimos, o humanismo não chegou a destruir inteiramente uma estrutura religiosa fundamental, muito pelo contrário: a do além, oposta à deste mundo, a do paraíso oposta à realidade terrestre ou, se você preferir, a do ideal oposto à realidade. Eis por que, aos olhos de Nietzsche, quando nossos republicanos herdeiros das Luzes se dizem ateus, ou mesmo materialistas, na verdade, permanecem crentes! Naturalmente, não por rezarem a Deus, mas porque não deixam de venerar quimeras, já que continuam a acreditar que alguns valores são superiores à vida, que o real deve ser julgado em nome do ideal, que é necessário transformá-lo para moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades etc.
No prefácio de Ecce Homo, um de seus raros livros em forma de confissões, Nietzsche descreveu sua atitude filosófica em termos que marcam perfeitamente a ruptura que estabelece com o humanismo moderno. Este afirmava reiteradamente sua crença no progresso, sua convicção de que a difusão das ciências e das técnicas iria produzir dias melhores, que a história e a política deveriam ser guiadas pelo ideal, ou utopia, que permitiria tornar a humanidade mais respeitosa em relação a si mesma etc. Temos aqui exatamente o tipo de crença, de religiosidade sem Deus ou, como diz Nietzsche em seu vocabulário bastante peculiar, de “ídolos”, que ele pretende desconstruir, “filosofando como um martelo”.
A conciliação entre forças ativas e reativas é, aos olhos de Nietzsche, o novo ideal, o ideal aceitável porque não é, como todos os outros, falsamente exterior à vida, mas, ao contrário, explicitamente sustentado nela. E é exatamente isso que Nietzsche chama de grandeza, um termo importante em sua obra, o sinal da “grande arquitetura”, aquela em cujo seio as forças vitais, porque são, enfim, harmonizadas e hierarquizadas, atingem com um mesmo ímpeto a maior intensidade e simultaneamente a mais perfeita elegância. É apenas por essa harmonização e hierarquização de todas as forças, mesmo as reativas, que o poder desabrocha, e que a vida deixa de ser diminuída, enfraquecida ou mutilada. Assim, toda grande civilização, tanto em escala individual quanto na das culturas, “consistiu em forçar o entendimento entre os poderes opostos, por meio de uma forte coalizão das outras forças menos irreconciliáveis, sem, no entanto, sujeitá-las nem acorrentá-las”.
Capítulo 6 – Depois da desconstrução (a filosofia contemporânea)
Certamente podemos dar continuidade, inclusive por outras vias, ao trabalho de Nietzsche, ou, de modo geral, à desconstrução. Digo “de modo geral” porque Nietzsche, embora eu o considere o maior, não é o único “genealogista”, o único “desconstrutor” e demolidor de ídolos. Houve também, como lhes disse, Marx e Freud. Desde o início do século XX, os três tiveram, se ouso dizer, alguns milhares de filhos. Sem contar que, a esses filósofos da suspeita, veio se juntar a vasta corrente das ciências humanas, as quais, no que diz respeito ao essencial, deram continuidade à obra de desconstrução dos grandes materialistas.
Para perceber isso plenamente, foi-me preciso descobrir o pensamento daquele que, na minha opinião, ainda é o principal filósofo contemporâneo, Heidegger. No entanto, ele também foi um dos fundadores da desconstrução. Seu pensamento, contudo, não é um materialismo – ou seja, uma filosofia hostil à ideia de transcendência, uma “genealogia” preocupada em provar que as ideias são todas e sem exceção produzidas por interesses inconfessados e inconfessáveis.
Ele é, pelo que entendo, o primeiro que soube dar ao mundo de hoje – que ele chama de “mundo da técnica” – uma interpretação que possibilitasse compreender por que é impossível permanecer na atitude nietzschiana, pelo menos se não quisermos nos tornar pura e simplesmente cúmplices de uma realidade que hoje assume a forma da globalização capitalista.
Contudo, no momento do nascimento da ciência moderna, não nos encontramos ainda no que Heidegger chama de “mundo da técnica” propriamente dito, quer dizer, um universo no qual a preocupação com os fins, com os objetivos últimos da história humana, vai desaparecer totalmente em benefício único e exclusivo da atenção aos meios. De fato, no racionalismo dos séculos XVII e XVIII, em Descartes, nos enciclopedistas franceses ou em Kant, por exemplo, o projeto de um domínio científico do universo ainda possui um alcance emancipador. Com isso, quero dizer que, em princípio, ele permanece submisso à realização de certas finalidades, de certos objetivos considerados vantajosos para a humanidade. O que interessa não são apenas os meios que nos permitirão dominar o mundo, mas os objetivos que esse domínio nos possibilitará, eventualmente, realizar: com isso, você vê que esse interesse não é puramente técnico.
Nessa nova perspectiva, a da concorrência generalizada – que hoje chamamos de “globalização” –, a noção de progresso muda totalmente de significado; em vez de se inspirar em ideais transcendentes, o progresso ou mais exatamente o movimento das sociedades, vai pouco a pouco se restringir a ser apenas o resultado mecânico da livre concorrência entre seus diferentes componentes.
Temos aqui, portanto, o essencial: no mundo da técnica, ou seja, a partir de agora, no mundo todo, já que a técnica é um fenômeno sem limites, planetário, não se trata mais de dominar a natureza ou a sociedade para ser livre e mais feliz. Por quê? Por nada, justamente, ou antes, porque é simplesmente impossível agir de modo diferente devido à natureza de sociedades animadas integralmente pela competição, pela obrigação absoluta de “progredir ou perecer”.
Ao que me parece, o movimento do mundo contemporâneo é um movimento em que duas tendências pesadas se cruzaram.
De um lado, uma tendência à humanização do divino. Para dar um exemplo, poderíamos dizer que nossa grande Declaração dos Direitos do Homem não é nada mais do que um cristianismo “secularizado”, quer dizer, uma retomada do conteúdo da religião cristã sem que a crença em Deus seja por isso uma obrigação. Nietzsche também percebeu isso muito bem.
De outro lado, vivemos, sem dúvida alguma, um movimento inverso de divinização ou de sacralização do humano no sentido em que acabo de definir: agora é para o outro homem que podemos, eventualmente, aceitar assumir riscos, não para defender a pátria ou a revolução, porque ninguém acredita mais, como no hino cubano, que “morrer por ela é entrar na eternidade”. Podemos ainda, é claro, ser patriotas, mas a pátria mudou de sentido: designa menos o território do que os homens que vivem nele, menos o nacionalismo do que o humanismo.
Ficha técnica:
Título: Learning To Live – A User’s Manual
Título original: Apprendre à Vivre: Traité de philosophie à l’usage des jeunes générations
Autor: Luc Ferry
Resumo: Rogério H. Jönck